Por que algumas línguas africanas não possuem o verbo “ser” e como isso muda o pensamento

Em muitas culturas linguísticas, o verbo “ser” é a espinha dorsal da comunicação. Ele define identidade, estado e existência. No entanto, em diversas línguas africanas, esse verbo simplesmente não existe — e isso não é uma falha gramatical, mas uma janela para outra forma de compreender o mundo.

Essas línguas mostram que é possível expressar realidade e identidade sem a necessidade de um verbo que fixe a essência, revelando uma visão mais dinâmica e relacional da vida e das pessoas.

A ausência que revela outra forma de existir

Idiomas como o yorubá, o zulu e o wolof possuem estruturas em que o verbo “ser” é desnecessário. Por exemplo, em yorubá, para dizer “ele é alto”, basta dizer “ó gígá” — literalmente, “ele alto”. A ideia de identidade está implícita na combinação entre o sujeito e o predicado, sem a necessidade de um verbo que afirme algo permanente.

Essa ausência reflete uma visão de mundo em que as coisas não precisam “ser” algo fixo para existirem. O indivíduo é compreendido em relação ao momento, ao contexto, à coletividade — não como uma entidade isolada com uma essência imutável.

A estrutura que fala sobre cultura

As línguas moldam a maneira como pensamos. Quando uma língua não exige o verbo “ser”, ela sugere que a identidade não é um ponto de chegada, mas um estado em movimento.

No zulu, por exemplo, o foco está mais nas relações do que nas definições. Dizer “ele é meu amigo” pode ser expresso apenas pela relação entre “ele” e “amizade”, sem precisar de um verbo intermediário. Isso comunica que o vínculo é mais importante do que a essência do indivíduo.

Da mesma forma, em várias línguas bantas, os prefixos e sufixos carregam o sentido de existência e estado, substituindo a função do verbo “ser”. Assim, o idioma opera como uma teia em que o sentido emerge da interação entre as partes — e não de um verbo centralizador.

Etapas para compreender esse fenômeno linguístico

  • Observar a gramática sem filtros ocidentais
    O primeiro passo é reconhecer que nem toda língua segue a lógica europeia de sujeito-verbo-predicado. A ausência do verbo “ser” não é uma limitação, mas um reflexo de uma visão diferente sobre o que é existir.
  • Analisar o contexto social e filosófico
    Em muitas sociedades africanas, a noção de pessoa está ligada à comunidade e à função social, e não a uma essência individual. Assim, a linguagem reflete essa cosmovisão coletiva: o ser é definido pelo agir e relacionar-se, e não por uma identidade fixa.
  • Perceber como a linguagem influencia o pensamento
    Quando não se usa o verbo “ser”, a mente tende a ver o mundo em movimento, em fluxos e transformações. A existência é percebida como processo, não como estado estático.
  • Comparar com outras tradições linguísticas
    Curiosamente, esse fenômeno não é exclusivo da África. Algumas línguas asiáticas, como o japonês e o chinês, também omitem o verbo “ser” em certas situações, especialmente quando o contexto já é suficiente para dar sentido à frase. Essa semelhança reforça a ideia de que o pensamento humano pode se estruturar de maneiras diversas, sem depender de um único modelo gramatical.

Quando a língua revela filosofia

A ausência do verbo “ser” também se conecta a filosofias africanas tradicionais, como o Ubuntu — que expressa o princípio de que “eu sou porque nós somos”. Aqui, o verbo “ser” perde o sentido de identidade isolada e ganha o de existência compartilhada.

O idioma, portanto, não serve apenas para descrever o mundo, mas para transmitir uma forma de vida. Quando um falante de yorubá ou zulu descreve algo sem usar o verbo “ser”, ele está implicitamente dizendo que o ser não é uma essência, mas um momento de conexão com o outro e com o entorno.

O impacto no aprendizado e na tradução

Tradutores e linguistas enfrentam desafios ao tentar converter essas ideias para idiomas europeus. Como traduzir algo que não precisa de “ser”?
Quando um falante de português ou inglês tenta aprender uma língua africana, ele percebe que o pensamento precisa se desapegar da ideia de existência como identidade fixa. Isso exige um exercício de percepção mais fluido, onde o que importa é a relação entre os elementos, não o verbo que os une.

Do ponto de vista cognitivo, isso mostra que a gramática molda o raciocínio. Falantes de línguas sem o verbo “ser” tendem a compreender o tempo e o ser de forma mais circular, interdependente e menos dualista.

Um convite a repensar o “ser”

A ausência do verbo “ser” nas línguas africanas é uma provocação profunda: será que realmente precisamos de uma palavra para existir?

Esses idiomas mostram que é possível viver, sentir e comunicar sem aprisionar o ser em definições fixas. Eles nos convidam a entender a identidade como algo que se constrói na relação e na mudança, e não como uma essência rígida.

Assim, ao olhar para as línguas africanas, não vemos apenas gramática — vemos uma filosofia viva, um modo de pensar que nos desafia a aceitar a fluidez da existência.

Porque, talvez, não é preciso “ser” para estar plenamente vivo.